Prós e Contras do Bom Velhinho, texto de Luiz Domingues.
Entre tantas simbologias que se espalham pelo imaginário do povo, sem dúvida que uma das mais fortes é o do Papai Noel.
Sua figura espalhafatosa, aliado ao fato de ser um bonachão, são apenas fatores superficiais, pois o que realmente encanta na sua figura são outros elementos.
O primeiro fato e sem dúvida o mais marcante, é o da sua predisposição contumaz para agradar as pessoas, distribuindo presentes e realizando sonhos.
Essa vocação para a bondade, é por si só algo extraordinário se pensado como ação utópica, em meio à uma realidade tão áspera em que vivemos, e por conta da luta pela sobrevivência, abre campo para todo tipo de adversidade.
A formação do seu mito remonta ao paganismo pré-cristão na Idade Média.
A sua mais remota raiz era o “Velho Inverno”, um ser que simbolizava o inverno enquanto personificação da natureza e que mediante invocações pagãs, realizava pequenas ações bondosas para amenizar os efeitos da estação entre os mais necessitados no duro frio europeu.
Alguns séculos se passaram até que o mito do velho inverno fundiu-se à história de um homem chamado Nicolau e que viveu na Turquia. Sua fama de ajudar pessoas carentes, inclusive custeando a resolução de suas necessidades o tornou objeto de santificação pela Igreja católica.
São Nicolau entrou para a história como um homem bondoso que presenteava as pessoas com enorme compaixão.
Chegando à idade contemporânea, São Nicolau abriu caminho para que Santa Claus, ganhasse o contorno com o qual mais nos familiarizamos na atualidade, e foi através de um desenhista alemão chamado Thomas Nast, que o estilizou como à um velho gnomo de floresta, que o personagem ganhou a aura mais fantasiosa e remetendo ao imaginário infantil das histórias da carochinha, numa publicação do final do século XIX.
Mas o toque comercial e capitalista pós Revolução Industrial veio mesmo quando a Coca-Cola contratou o publicitário Haddom Sundblom em 1931, e o bom velhinho ganhou a roupa vermelha que o tornaria famoso mundialmente, associando-o às cores do dito refrigerante e criando o mito subliminar de que sua simpática figura tem o espírito da companhia e vice-versa.
Cabem várias visões sobre esse ato de bondade desinteressada de um ser mitológico que tem como ocupação, apenas agradar as pessoas.
Evidentemente que o imaginário humano se agarrou à essa ideia como uma boia salvadora, em meio ao mar revolto da vida real.
Como uma ferramenta psicológica a lhe dar esperança de dias melhores, tem sua validade, é claro.
Pelo lado oposto, detratores do mito o acusam de ser mera ferramenta mercadológica do capitalismo selvagem.
Não deixa de ser verdade que tal artifício é usado ad nauseaum pelo mundo corporativo, comércio, indústria & afins.
Não é culpa da personagem, mas o fato é que o “bom velhinho” é usado e abusado em campanhas publicitárias extremamente apelativas, e que chegam a enojar pelo excesso de pieguice inerente.
Outro aspecto nocivo que se criou com essa manifestação folclórica, é o efeito depressivo que alavanca, para quem está em situação difícil sob qualquer aspecto.
Mais uma vez não é culpa da personagem, mas para quem está doente; encarcerado; com dificuldades financeiras ou de qualquer outra razão; se perdeu um ente querido recentemente; sem perspectivas ou qualquer outra (des)motivação de baixo astral, a figura do velhinho bonzinho e otimista e que não conseguirá resolver seus problemas imediatos, só potencializa sua baixa autoestima.
Mas claro, é nas crianças que o efeito do mito é mais forte, naturalmente.
A manipulação adulta em lhes imputar a contrapartida de ser um bom menino / menina, para que seja merecedor do sonhado presente que o velhinho vai lhe trazer no final do ano, é um ranço moralista, com implicações religiosas, não resta dúvida.
Mesmo com boa intenção em estabelecer limites e o conceito de direito e deveres para as crianças, os pais usam tal ferramenta com uma carga negativa, que a meu ver tem uma carga de chantagem, coação e indo além, sutilmente estabelece um sistema opressivo de dominação ditatorial, abominável.
Poucos dias atrás conversei com um conhecido meu que tem formação acadêmica de psicologia, e é também pedagogo e bastante envolvido com militância em ações de cidadania e sustentabilidade ecológica.
Dono de um charmoso Café no bairro do Belém, na zona leste de São Paulo, enquanto me servia um café daqueles bem caprichados, coisa de barista experiente, contou-me como faz para manter intacto o Papai Noel em tamanho natural que orna seu Café nessa época do ano, e que encanta as crianças, mas provoca a vontade quase inevitável nos adolescentes, de o vandalizarem gratuitamente.
Com metodologia e paciência zen, domou o instinto normal dessa molecada oriunda de uma escola particular e cara, que fica há dois quarteirões de seu estabelecimento. E seu Papai Noel em tamanho natural e que fala e canta em inglês, graças aos recursos eletrônicos dos quais dispõem, não corre mais riscos...
Nesse momento, percebi que a visão lúdica do Papai Noel tem sim uma função benéfica.
Meu amigo falando que a magia é fundamental para o desenvolvimento cognitivo das crianças e que sem o lúdico, não tem como construir as bases da criatividade, fez todo o sentido naquele instante, pois ativou em mim uma ligação pessoal com o conceito.
Mesmo sabendo disso ao ler artigos e ouvir gente entendida em psicologia / psicanálise e demais profissionais que estudam a psique humana, eu tinha apenas a compreensão intelectual de tal ditame.
Mas ali, em meio aos goles do café, ouvindo meu amigo explicando com bastante embasamento, e vendo o boneco cantando Jingle Bell em meio aos indefectíveis “ho ho ho”, fui além da racionalização meramente intelectual e entendi a argumentação sob outro viés.
Estabelecendo uma percepção muito pessoal, mas que ajudou-me a compreender muito melhor a argumentação, de fato, a magia do Papai Noel tem muita importância como ferramenta lúdica para os pequenos.
Se houver a possibilidade de não haver coação, manipulação, e domínio sob a égide do medo, sem barganhas e sem a ideia de que deva existir contrapartida obrigatória, acreditar na bondade como ferramenta para disseminar ideais de fraternidade entre os homens, é certamente uma forma de contribuição inestimável para melhorar este planeta.
Tal gesto pode ser a alavanca para uma nova consciência de que a fraternidade deva ser exercida nos 365 dias do ano, e não só motivada pelo chamado espírito natalino.
Tal consciência deve assumir tom de naturalidade e não estar associada à compaixão tão somente, e sobretudo, desassociada de qualquer fundamentação religiosa, filosófica ou institucional.
Ser fraterno naturalmente, de forma anônima, sem fazer disso um acontecimento que deva angariar simpatia pessoal e que reverta em popularidade, que invariavelmente é interpretada como uma oportunidade política, e entenda-se política não como a nobre ciência social, mas a política rasteira de cunho partidário e eleitoreiro.
Talvez aí esteja a verdadeira essência do Papai Noel, ou seja, o papel de nos fazer enxergar que devemos ser fraternais naturalmente, pois isso nos faz bem interiormente.
Como personagem, ele é imaginário, mas em termos sutis, o Papai Noel pode ser a metáfora dessa nova ordem fraternal onde presentear as pessoas se torne algo normal e não me refiro a presentes materiais, evidentemente.